domingo, 18 de setembro de 2011

OS VISITANTES

Imagine um apartamento de pouco mais de 40 metros quadrados onde moram 2 velhinhos, Ruth, 89 anos e Beco, 92 anos com o cãozinho Rick, um poodou branco bem peludo e gordo de tanto comer pão e bolo para acompanhar seus donos. Imagine a rotina diária de muitos anos de repente ser invadida sem prévio aviso por 7 mulheres no meio de uma tarde!
Comece a imaginar, porque foi exatamente o que aconteceu na semana passada. Tudo começou com um telefonema onde minha prima combinava uma visita.
Silvia - Oi Ana, tudo bem? Tenho uma proposta.
– Oi Sil, tudo bem, qual proposta? (Esta sou eu)
Silvia – Quero visitar o Tio Beco, falei com ele semana passada, me pareceu bem, mas faz tanto tempo que não o visitamos que preciso ver de perto como ele esta. Vc não quer ir junto?
- Pode ser, faz tempo que não o vejo também, uma vergonha¸ mas a vida tá tão corrida, o trabalho, os filhos, o curso, ai... tá f...!
Silvia – Se sei.
- Mas vc sabe que ele às vezes não reconhece a gente, vai perguntar várias vezes a mesma coisa... Acho que por conta disso nem nota que não aparecemos mais...
Silvia – No telefone ele me pareceu bem, perguntou até do meu marido!
- Perguntou dos seus filhos? Dos seus sogros que ele adorava?
Silvia – Não...
– Então se prepare. Dependendo do dia dou um jeito de ir. Me avise.
No dia combinado, Silvia avisa que já está a caminho. Saio para encontrá-la sabendo que chegaria depois e ficaria pouco tempo, mas ao menos minha consciência ficaria mais tranquila. Quando chego ao apartamento onde mora o tio Beco com sua irmã Ruth, qual não é a minha surpresa ao ver que Silvia, sem me avisar, levou sua filha Cristal de 17 anos, nossa prima Meire com sua filha adolescente Bruna e nossas tias tortas Meire e Márcia, viúvas, que embora na terceira idade, se acham interonas e acreditam, aos quase 70 anos, que a velhice para elas ainda demora a chegar.
O micro apartamento estava lotado como saguão de pronto socorro. Precisávamos pedir licença uma as outras para se mover. Para chegar ao banheiro, duas pessoas precisavam levantar e afastar as cadeiras para que fosse possível abrir a porta. O cheiro de remédio por todos os lados impregnava até na alma e o cachorro que sequer sai na rua porque os dois nem de casa saem mais, estava tão eufórico com aquela gentarada falante, que não ficava quieto. Pulava de um lado para outro, lambia todo mundo, latia e não atendia a tia Ruth, que começa a demonstrar sua irritação dando severas broncas no coitadinho.
O pronto socorro foi rapidamente se tornando um verdadeiro hospício. Todas queriam perguntar aos dois, ao mesmo tempo, o que faziam, como estavam, quais remédios tomavam, quem cuidava deles, onde passeavam, ou seja, tudo que não perguntaram a eles por meses, algumas, até por anos de ausência e distância.
Como se eles já não estivessem tontos o suficiente, as tias visitantes, quituteiras de primeira, vão a cozinha e voltam com pão frances, pão de linguiça, bolo de fubá, mortadela, coca-coca e sei lá mais o que. Colocam a mesa sem pedir autorização e oferecem o lanchinho. O hospício tinha sido instaurado. Mal cabíamos todos sentados usando tudo que havia disponível, cadeiras, sofá, banquetas e de repente tínhamos uma micro mesa lotada com parte das visitas ao seu redor e os donos da casa sentados imóveis em seus lugares, completamente zonzos.
Logo que foi oferecido o lanchinho e divulgado o menu, Ruth se manifestou:
Ruth - Eu não quero nada, estou com dor de cabeça, não estou me sentindo bem. Mortadela, lingüiça, coca... Não podemos comer estas coisas, o Beco passa mal
Neste momento Silvia me cutucou e advertiu a todas na mesa de que tinha a impressão de que estávamos incomodando. Não acreditei no comentário. É claro que estamos incomodando, mas tudo bem pensei, afinal nunca tínhamos feito uma visita coletiva e provavelmente, outra, só em outra encarnação, pelo menos pra mim. Silvia acreditava que estavam apenas surpresos com a visita em grande escala e com direito a lanchinho. Mas jurava que tio Beco estava radiante.
Todas se serviram, Bruna e Cristal pareciam retirantes comiam e riam sem parar e as tias Meire e Márcia serviram tia Ruth e tio Beco. Por alguns instantes ficamos a cochichar na mesa, falávamos da casa deles, do cheiro de remédio, da cuidara Clara muito boazinha... Até que não resisti e fiz um comentário com segundas intenções.
- Vocês repararam que a TV esta no canal de segurança do prédio? Das outras vezes que vim aqui também estava neste canal, mas não tive coragem de perguntar por quê.
Começou um rebuliço na mesa, todas querendo saber se em algum momento eles assistiam a uma novela ou outro programa qualquer. Umas achavam que era conhecidência e falaram que o meu comentário era maldoso, outras ficaram chocadas com a possibilidade do isolamento do mundo, até que uma das tias ousou perguntar sobre a TV. Foi como puxar o fio solto de uma barra, uma após a outra perguntava sem que o pobre tio Beco tivesse tempo de responder. Uma falou da novela nova das 8,  a outra falou do BBB, depois falaram do ator que fazia o vilão da novela das 6 e não precisou muito para vir a resposta que ninguém queria ouvir.
Beco – Não...
Ruth - Televisão me da dor de cabeça, não liga, não liga, não to passando bem. Ai meu Deus, não to passando bem.
Beco – Não vejo novela, nem outros programas já faz tempo.
Silvia – Nem o Jornal ou o fantástico, sei lá?
Meire – O BBB, como o senhor consegue ficar sem ver o BBB tio...
Márcia – O jogo do Santos, vc nunca perdeu um jogo? Ainda mais agora que o Santos é o grande campeão. Isso aposto que vc acompanha.
Beco – Às vezes tento o rádio, mas não ouço direito, então logo desisto.
Enquanto riem entre os dentes de tão nervosas e teimam em não acreditar na revelação que tinham acabo de presenciar, resolvo que preciso tirar todas dali rápido, sinto que Ruth está nos fuzilando com o olhar.
– Eu avisei vcs que eles ficavam vendo a vida das pessoas do condomínio o dia todo e sem som. Vamos embora, estamos transformando a rotina deles num verdadeiro inferno. A Ruth esta passando mal por que não está acostumada com gente, ainda mais muuuuuita gente. Já to me sentindo culpada de ter vindo incomodar.
Por alguns segundos todas como que hipnotizadas ficam observando a TV e seus muitos quadrados, cada qual com um lugar do prédio, os elevadores, o hall do prédio, a portaria, a garagem, a calçada, o portão eletrônico. Foi unânime. Bater em retirada o mais rápido possível era o mais sensato a fazer. Em dois minutos, tiramos a mesa, lavamos xícaras, copos, pratos, nos despedimos dos dois e do Rick que nos acompanhou até o hall. Na saída Ruth olha para Silvia e para mim e pergunta:
Ruth – Quem são vocês? Eu conheço vocês? Vocês já vieram aqui antes?
Eu, constrangidíssima, ainda tentei explicar o grau de parentesco, Silvia tentou ajudar, mas a coisa só piorava. As tias inteironas, chocadas, não conseguiam se pronunciar, as adolescentes riam entre si e cochichavam baixinho algo que ninguém entendia. Neste instante saia justa interminável, surge o elevador que soa como um gongo de salvação. Nós 7 entramos correndo no elevador completamente atordoadas com a realidade que acabávamos de presenciar, com a sensação de que não fizemos bem a eles e muito menos a nós com aquela visita. Quando a porta do elevador se abriu a falação começou de novo. Todas falavam juntas e ninguém ouvia ninguém. Cada uma tomou seu rumo e desapareceu, depois me dei conta que nós nem nos despedimos umas das outras.