quinta-feira, 11 de dezembro de 2014


Ha exatos 30 anos da morte de minha mãe, memórias quase esquecidas me visitam trazendo um doce sabor de nostalgia. Com a esperança de agarra-las e segurar bem forte junto ao peito de forma a nunca mais deixa-las escapar, escrevo o relato deste lampejo de lembrança para mantê-la viva.

Lembranças
Se minha mãe estivesse viva hoje, acho que ela se orgulharia de mim. Pelo menos eu gostaria que ela se orgulha-se de mim. Foi duro chegar até aqui, não sei se foi a vida que não me deu muitos caminhos, se eu é que não soube percebe-los, ou se por meu temperamento difícil e teimoso escolhi o mais longo e difícil. Sou obrigada a confessar que não sou fácil!
O meu pai babava nos filhos, então ia se orgulhar por qualquer coisa que fosse. Minha mãe não, ela era dura, exigente, dava muito valor a educação e sempre dizia: “Estudem para nunca ser dependentes de ninguém”. Ela não gostava de depender do meu pai, como só tinha o ginásio e parou de trabalhar logo depois que eu nasci descobriu que esta vida de esposa, mãe e dona de casa era pouco para ela. Não demorou muito para ela descobrir uma forma de ter seu próprio dinheiro, mas estava longe de ser independente. Cozinhava muito bem, fazia lindos bolos confeitados, doces deliciosos e resolveu fazer cursos de bolos decorados, salgados e logo já estava fazendo bolos do Mickey, Pato Donald, Tio Patinhas, 3 Porquinhos,  Margarida, Mine, docinhos, salgados, enfim, fazia festas completas da decoração a comida e em pouco tempo já fazia para o condomínio onde morávamos,  prédios vizinhos, fora os amigos e parentes.
Tudo começou no meu primeiro aniversario todo decorado pela minha mãe, ainda que de forma tímida e simples. Um lindo bolo com cara de coelho, muitas balas de coco e docinhos espalhados pela mesa, sem contar os salgadinhos dela que eram uma delicia! Anos se passaram e no dia do meu aniversario de 9 anos, em um novo condomínio lotado de crianças, minha mãe fez novamente uma festa linda, o tema era o tempo e o bolo um relógio. Minha mãe, dona Iracema fechava seu primeiro negócio. Era uma delicia, sempre sobravam docinhos e salgadinhos e eu e meus irmãos dávamos um fim.
De todas as festas a que mais me marcou foi a do Pato Donald, o bolo e mesa decorada eram lindos, foi no aniversario do meu irmão. O bolo era coberto de coco ralado tingido, o casaco do Pato Donald era azul claro, a gravata vermelha, o chapéu azul escuro e claro, o bico laranja e sorridente fazia parecer que a felicidade dele por estar ali era tão grande que poderia sair brincando a qualquer momento. Lógico que o ciúme me bateu na hora e não deixei minha mãe em paz até que ela fizesse para mim o aniversário da Margarida.
E é claro que venci pelo cansaço. A Margarida era linda, sorridente, toda confeitada com coco ralado tingido em tons pastéis e um laço enorme de fita vermelha de cetim na cabeça, tinha um olhar de canto, como se estivesse paquerando o Pato Donald. Foi o melhor aniversário do mundo, embora eu e meus irmãos tivéssemos festas deste tipo, cheias de doces e salgados deliciosos todos os anos, essa foi incomparável.
As fotos me ajudaram por muitos anos a lembrar disso tudo, mas infelizmente todas estas fotos estavam em slides, hábito do seu Ibraim, meu pai, que adorava fazer sessões no fim de semana para reunir a família e vermos juntos as fotos através de um projetor que ficava refletido na parede da sala de jantar. Por ficarem muito tempo no porão da casa de uma tia depois que meus pais morreram, os slides mofaram e foram para lixo junto com muitas das memórias daquela época, pois como nas fotos antigas, a cada ano que passa as lembranças ficam mais distantes, desbotadas, translúcidas até que somem. Mas ainda tenho algumas boas lembranças na memória e várias fotos em papeis fotográficos que embora meio desbotadas, são as únicas recordações que tenho dos meus pais de quando eles ainda estavam vivos.
Paro para pensar e vejo que preciso tirar mais fotos com meus filhos hoje que são adolescentes. Porque deles pequenos tenho muitas, mas deles adolescentes não. Meus filhos tiram muitas fotos, em tempos do espetáculo mediático com todos os celulares com câmeras, difícil quem não tira. Tirem mesmo, tirem muitas fotos, elas nos ajudam a manter viva memórias de momentos importantes, divertidos, alegres, mas facilmente esquecíveis ao decorrer das décadas. Preciso usar mais minha filmadora. Urgente! Acabo usando mais em viagens.
Mas voltando a minha mãe, nada disto foi o suficiente. Ela resolveu vender roupa em casa. Montou uma loja retrátil no quarto do meu irmão, que também era usado como sala de televisão, pois não tínhamos TV na sala. Chamo de loja retrátil porque quando vários dos armários se abriam parecia mesmo que se estava numa loja, a escrivaninha era o escritório, as prateleiras divididas por numeração e em cada porta um estilo diferente de roupa. Comprava roupas no Brás,  José Paulino e até no interior e vendia para o condomínio inteiro que traziam amigas, primas, irmãs e mães. Era um entra e sai de mulherada, naquela época a maioria das mulheres do condomínio eram dona de casa, professora, trabalhavam meio período ou prestavam serviço voluntário, então estavam sempre tomando café uma na casa da outra nas horas vagas.
Bom, nem preciso dizer que o café passou a ser lá em casa e a central de fofocas também. Mas quando meu pai chegava nunca tinha ninguém. A casa estava sempre em ordem e o jantar quase pronto, era tomar banho e todos sentávamos juntos para jantar. Minha irmã era pequena nesta época e às vezes já estava no berço.
Era legal, minha mãe sempre tinha dinheiro para comprar as suas roupas, bolsas, sapatos. Ela era fanática por sapatos de salto e bolsas. Chiquérrima e arrumadíssima sempre, ela precisava de altura já que era baixinha, 20 centímetros a menos que meu pai, situação insuportável para ela. Nós três, os filhos, tínhamos que andar sempre arrumadinhos, ela comprava um monte de roupa para nós quando ia fazer as compras para a lojinha. E não deu outra, a mulherada do condomínio que já tinha conta, marcava na caderneta e pagava por mês, começou a pedir roupa de criança como as nossas. Chego a pensar que minha mãe instintivamente era uma ótima marqueteira, pois tudo que fazia para nós virava negócio para ela.
Não sei por que, talvez por falta de capital para investimento, minha mãe chamou a prima dela pra ser sócia da parte infantil. A prima topou e logo já estavam fazendo as compras para inaugurar a sessão infantil na loja retrátil no quarto do meu irmão. Para a inauguração do novo departamento da loja resolveram fazer um desfile de modelos adultos e infantis. Obviamente que os modelos infantis não tiveram escolha, eu e minha irmã e alguns primos fomos intimados, meu irmão acho que conseguiu escapar, não me lembro dele fazendo desfiles, mas pode ser só um ato falho de minha memória. No final eu adorei, também desfilaram uma prima da minha idade, uma prima já adolescente, uma prima casada já perto dos vinte e cinco anos e duas tias de uns trinta e poucos, irmãs do meu pai, já mais cheinhas, para representarem a maioria das clientes.
As modelos levavam pratos de petiscos e minha mãe e minha tia forneciam o chá, o café e o suco. Mas detalhe, o desfile foi no meu apartamento. Como era primeiro andar e minha mãe conhecia o condomínio todo, inclusive nesta época meu pai era o síndico, nunca tivemos problemas com vizinhos. Aconteceu num sábado, me lembro até hoje da minha mãe advertindo meu pai pela manhã_ “Vá logo para o clube, preciso arrumar a casa para o desfile e como vai ser só à tarde, vai terminar só no fim do dia, então demore pra chegar.”
O desfile foi um sucesso, a mulherada amou, levaram as mães, irmãs, fofocaram uma tarde inteira e compraram para elas e para os filhos. Mas algumas antes de ir embora foram dizer no pé do ouvido de minha mãe que no próximo desfile, elas queriam ser as modelos. Lembro das muitas risadas que minha tia e minha mãe deram depois disso. O negócio cresceu e as crianças do prédio e dos parentes consumiam roupas e festas. A esta altura minha mãe tinha até cartão de visita para o negócio das festas que precisou ser ampliado e começou a oferecer shows de palhaços, bexigas de bichinhos, mágicos e maquiagem.
Minha mãe estava feliz, por alguns poucos anos vendeu roupas e fez festas, na minha adolescência os desfiles eram no salão de festas do condomínio, com varias modelos, eu inclusive que além de achar tudo bem divertido cheguei a pensar em seguir carreira modelo. Até alguns homens começaram a acompanhar as mulheres aos desfiles pra comer os salgadinhos, docinhos e fazer o cheque no final. Na adolescência eu era só a amodelo, não usava mais nada do que minha mãe vendia, gostava de ir ao shopping comprar minhas roupas, já tinha enjoado de comer os salgadinhos e os docinhos e nem reparava mais quais eram os personagens que enfeitavam os bolos.
Me lembro da minha mãe vendendo roupas e fazendo festas até nos mudarmos de São Paulo, quando fomos atrás de uma promoção do meu pai. Só hoje vejo que ela foi contra a vontade, pois precisou deixar o seu negócio por conta da carreira do meu pai. Foi nesta época que minha mãe começou a dizer que deveríamos ter uma profissão, não adiantava ganhar dinheiro como ela fazia, em casa, isso não tinha valor e não era suficiente para manter uma família, precisamos ter uma profissão, estudar. Tenho certeza que puxei dela esse excesso de exigência comigo, com meus filhos e com o mundo... Mãe, onde quer que esteja, saiba que fiz o melhor que pude e que eu me orgulho do caminho que escolhi até agora. Com erros e acertos, coisas  que demoraram mais do que eu previa e queria, hoje esta como eu quero. O caminho é constante, é longo, mas meu passo já esta bem mais forte e equilibrado. Hoje escrevo as histórias que lembro para salvá-las de minha memória, para que não se apaguem como as velhas fotos e para eu possa ter você e o pai um pouco por perto.

Andrea Nero
Dez/2014

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